Não era exatamente de se esperar, mas, em decorrência das mudanças climáticas, tem até estudiosos da área de agronomia trabalhando na Antártida. Com o derretimento das geleiras provocado pela elevação da temperatura do planeta, porções de solo que antes eram cobertas por gelo começam a ficar expostas à atmosfera, e pesquisadores passaram a questionar quanto gás carbônico essas terras recém-desnudadas estão despachando para o ar.
É basicamente a dúvida que motiva Newton La Scala Júnior, um físico que decidiu voltar-se para pesquisas aplicadas e foi parar na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal. Ele esteve no verão passado no continente gelado, e Alan Rodrigo Panosso, seu doutorando, deve voltar lá neste ano para dar continuidade aos estudos.
Ao longo dos anos, La Scala desenvolveu uma técnica para medir emissões de CO2 de solos que abrigam plantações de cana-de-açúcar. A Antártida apareceu como um novo e importante campo para a aplicação desses métodos.
Embora o continente seja praticamente todo coberto por gelo – e isso, segundo os especialistas, não deve mudar tão cedo, mesmo que a temperatura continue subindo nas próximas décadas –, há algumas regiões, particularmente no oeste antártico, em que alguma parte do solo, sobretudo nos verões, acaba exposta ao Sol.
Com isso, os microorganismos que vivem debaixo da terra e metabolizam a matéria orgânica presente ali podem emitir gases causadores do efeito estufa. Com o solo aberto, também não tarda a aparecer alguma vegetação, que expira gás carbônico na respiração. O que La Scala e seus colegas fizeram foi medir no local quanto CO2 estava sendo emitido em diversos locais próximos à Estação Antártica Comandante Ferraz, base brasileira em solo antártico.
A instalação está na ilha Rei George, a maior no arquipélago das Shetlands do Sul, a 130 km da península Antártica. Por sua localização mais afastada do polo, ela está bastante sujeita aos efeitos da mudança climática. “É interessante, porque as transformações aparecem ali de forma ampliada”, conta La Scala.
Com efeito, um estudo produzido por cientistas americanos e publicado na revista científica britânica “Nature” no ano passado mostra que a temperatura média no oeste antártico subiu mais de 0,1°C por década nos últimos 50 anos. Mas, em alguns lugares específicos, esse valor ultrapassa 0,5°C por década. “Estamos falando de coisa de 2,5°C nas últimas cinco décadas. É muita coisa”, diz o pesquisador da Unesp, ressaltando que a maior parte do continente antártico não está passando por mudanças climáticas tão radicais assim.
Na prática, é como se aquela região específica – onde está a estação brasileira – estivesse testemunhando o aquecimento global em “fast-forward”. Torna-se, portanto, imperativo descobrir o que está acontecendo por lá, até mesmo para antecipar coisas que virão a aparecer mais tarde em outras regiões do planeta.
No tempo e no espaço
As medidas obtidas pela equipe, sob coordenação de Carlos Schaefer e Eduardo de Sá Mendonça, da Universidade Federal de Viçosa, renderam, de início, dois estudos. Um deles procurou avaliar a variação das emissões de gás carbônico pelo solo antártico dependendo do tipo de cobertura presente. “Investigamos a diferença entre uma superfície com gramíneas, que estão se tornando cada vez mais comuns, e uma com um tipo de musgo”, afirma La Scala.
As medições são obtidas no próprio local, com uma câmara automatizada colocada sobre um anel de PVC que veda uma pequena área do terreno. “Em coisa de um, dois minutos você já tem uma medida”, conta o físico.
As emissões de CO2 foram maiores em terrenos com grama (espécie Deschampsia antarctica) do que com musgo (Sanionia uncinata). Curiosamente, outra influência importante na quantidade de dióxido de carbono emitido vem dos pinguins. As fezes das aves são um elemento importante de fertilização do solo com matéria orgânica, o que induz um aumento na liberação do gás-estufa.
Os resultados, aceitos para publicação no periódico “Antarctic Science”, ajudam a qualificar que tipo de efeito se observa de acordo com a colonização do terreno por um dado tipo de vegetação – ou pelo solo nu. Mas há também outra variável importante na determinação do efeito das emissões por um dado tipo de superfície: a temperatura.
Mais uma vez, a localização da Estação Antártica Comandante Ferraz ajudou, pois além de estar numa região em que há solo exposto (embora a maior parte da ilha Rei George fique permanentemente coberta de gelo), há também grande variação de temperatura. “Ali nós conseguimos, em questão de dias, uma flutuação que vai de zero a dez graus, um intervalo bom para tomarmos medições”, indica La Scala.
Ficou claro que, como esperado, a temperatura tem uma enorme influência no quanto o solo emite de CO2. Quanto mais quente, mais carbono vai para a atmosfera, e o aumento se dá de forma exponencial. Essas conclusões figuram em outro artigo, também já submetido e aceito para publicação, desta vez na revista “Polar Science”.
Agora, se as emissões de solo exposto sobem agressivamente com a temperatura, e o planeta está ficando cada vez mais quente (em especial aquela região do oeste antártico), promovendo o recuo de geleiras e a exposição de mais terreno ao ar, já seria o caso de se desesperar e se render a uma mudança climática catastrófica para os próximos anos?
“Não necessariamente”, afirma La Scala, indicando que essas transformações, no fim das contas, talvez venham até arrefecer o avanço do aquecimento global. Isso porque esses solos descobertos tendem a ser mais vegetados com o tempo, e aí passa a ganhar peso um outro mecanismo da natureza: a fotossíntese.
Rede complexa de relações
Como se sabe, as plantas se alimentam da conversão de energia solar e gás carbônico extraído da atmosfera em oxigênio. Em geral, esse processo mais que compensa a própria respiração das raízes dos vegetais, que libera o mesmo gás, e produz um mecanismo de fixação de carbono no solo. É bem possível que isso também aconteça na Antártida, e os terrenos expostos passem a ser sumidouros de gás carbônico, ajudando a conter o acirramento do efeito estufa.
“Ainda não sabemos se isso acontece porque em nossos estudos usamos uma câmara opaca, que bloqueia a luz solar. Então, na hora em que fazemos a medição [de uma área], a planta que pode estar naquele solo não está fazendo fotossíntese. Medimos apenas as emissões”, diz o pesquisador. “Mas já cogitamos, para o futuro, usar uma câmara transparente, para tentar incluir também os efeitos de absorção do dióxido de carbono. Quando isso acontecer, podemos até descobrir que o desaparecimento do gelo reduz a presença de CO2 na atmosfera.”
E aí, quando você acha que finalmente começou a entender a contribuição da Antártida (positiva ou negativa) para a mudança climática, entra em cena o albedo.
Grosso modo, ele é o quão reflexiva é a superfície de uma dada região. Um terreno que reflete mais luz rebate melhor a radiação de volta para o espaço e, portanto, esquenta menos sob o sol. Já outro mais escuro absorve mais do que reemite. Trocando em miúdos, gelo (mais claro) ajuda a se livrar do calor; solo rochoso faz o contrário. Então, mesmo que o terreno exposto promova fotossíntese e sirva como sumidouro de carbono, ainda será preciso avaliar o que ele faz em termos de absorção ou reflexão da radiação solar.
Em suma, ainda há muito que investigar no continente antártico. E o Brasil parece finalmente disposto a investir nisso.
“As coisas mudaram muito de uns cinco anos para cá”, afirma Jefferson Simões, glaciologista brasileiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pioneiro das pesquisas antárticas no país. Ele foi o primeiro a conduzir uma expedição nacional até o polo Sul, em 2008, e agora também figura numa posição de gerenciamento dos estudos brasileiros, como coordenador do recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, que agrega cerca de 140 pesquisadores brasileiros e estrangeiros. É nele que estão inseridos os trabalhos de La Scala.
Além desse grupo, o Ministério da Ciência e Tecnologia também promoveu a criação do INCT Antártico de Pesquisas Ambientais. Enquanto o primeiro é mais abrangente e atinge todas as áreas do planeta ocupadas por gelo, o segundo é mais focado na Antártida e reúne aproximadamente 50 pesquisadores, dentre eles José Alexandre Perinotto, da Unesp de Rio Claro. Ele estuda o recuo de geleiras na região próxima à estação brasileira.
“Há muita coisa a ser explorada ainda, e o foco que o Programa Antártico Brasileiro está tomando agora vai mais na direção da meteorologia, do estudo da influência do ambiente antártico no clima do Brasil”, afirma Simões. Ele faz questão de destacar que as famosas “frentes frias” que costumam atingir o país vêm todas da região polar. Seja o que for que possa acontecer lá nos próximos anos em termos de derretimento das geleiras e emissão ou absorção de gás carbônico, terá potencial para afetar o clima de todo o Brasil.
“Unesp Ciência” é uma publicação da Universidade Estadual Paulista que traz reportagens sobre os grandes temas da ciência mundial e nacional e sobre as pesquisas mais relevantes que estão sendo realizadas na instituição, em todas as áreas do conhecimento.